quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Este texto descritivo fala sobre o que é o Natal hoje: comida, compras e o "velho vermelhusco" com o seu cortejo de decorativos

ONDE ESTÁ O MENINO?


Maria José Nogueira Pinto
jurista
O único traço rico do meu presépio é conseguido pelas figuras, réplicas dos presépios barrocos italianos, o movimento elegante dos corpos, a doçura dos traços fisionómicos, a delicadeza das cores, o conjunto organizando-se numa coreografia de expectativa, de iminência de algo grandioso e há muito anunciado.

O musgo, que hoje já não tenho à mão de semear, veio do Horto e é tão espesso que mais parece artificial. Dois tarolos de lenha tentam reproduzir, nas extremidades, uma espécie de montes e colinas, com as quais pretendo enquadrar o vale onde vou deitar o Menino. Não resisto a colocar, em equilíbrio mais que precário no ponto mais alto desta composição, um tosco castelo para lembrar Herodes. E uma fonte de barro, vários pequenos espelhos a fingir lagos e rios, e duas pontes arquitectonicamente impossíveis como contributos para uma versão mais realista daquela improvável paisagem. Contemplo a minha obra sem grande orgulho. Excepto as figuras, claro!

Os pastores têm a mão sobre os olhos, perscrutando o horizonte; a mulher junto do poço, ergue a vasilha como que suspensa num momento de revelação; um outro sopra na sua gaita de foles como se lhe coubesse o dever de dar sinal, de anunciar o acontecimento; um camponês segura a cesta dos ovos como um bem precioso destinado à homenagem e ao reconhecimento de algo muito importante; os reis do Oriente não desiludem com as suas vestes de brocado e ouro velho, a sua alta estatura, a cor da sua pele e os seus presentes reais guardados em urnas que, mesmo na pequena dimensão das figuras, se percebem de ouro revestidas de pedras de preciosas.

No sopé do meu improvisado monte, protegido pela encosta, está o Menino. Deitado nas palhas, só tem umas faixas brancas a cobrir parte da sua nudez de recém-nascido. Ao lado, a Mãe debruça-se sobre ele, o movimento do corpo descreve esse impulso de protecção materna e a cabeça inclinada deixa adivinhar um olhar de desvelo. Um pouco mais afastado, num segundo plano, aquele que lhe estava destinado, José mantém-se de pé, numa atitude protectora.

História terrível, esta, em que se cruzam profecia, desígnio e mistério, que requer a nossa atenção humilde para deslindar os sinais de aparente contradição: o medo do rei Herodes, a matança dos inocentes, a fuga de Maria e José, as portas que se fecham, o parto num estábulo, as dores, o frio, a solidão e a pobreza. Mas também a estrela que guiou os reis do Oriente e os anjos que anunciaram a boa nova aos pastores.

Onde se tinha visto, alguma vez, o Divino descer voluntariamente à condição de humano, expor-se a todas as vulnerabilidades para estar entre nós, para que não ficássemos sozinhos? Uma história de esperança e de salvação. Esperança nos homens de boa vontade e caminho de redenção, libertador do jugo a que tantos estavam condenados.

O Natal é isto mesmo. Para os que têm fé, a renovação da Encarnação, de um poderoso e salvívico acto de amor. Para os que não têm fé, o aniversário de um homem que revolucionou o seu tempo, fez face aos poderosos, exaltou os humildes, lutou pela justiça e pela liberdade e, por isso, foi crucificado. Em qualquer caso, uma imensa prova de confiança na nossa pobre condição humana, que devia servir de motivo para alguma reflexão interior, sobre cada um de nós e os outros, todos os outros que vivem, ainda hoje, na privação da esperança e da dignidade.

Há dois meses que nos incitam a "brincar ao Natal", agora definitivamente transformado num entrudo pelo marketing desenfreado da sociedade de consumo. Só vejo o velho vermelhusco, o seu trenó e as suas renas, sinos, fitas e bolas, pinheiros de todos os tamanhos, comida e presentes. Uma sociedade infantilizada parece querer fugir de qualquer espiritualidade, recusar qualquer dimensão transcendental. Onde está, então, o Menino, a razão única desta efeméride, quer se acredite quer não, na sua divindade?

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