segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Sobre Portugal

O QUE FALTA PARA SAIR DA CRISE
João César das Neves
professor universitário

naohaalmocosgratis@fcee.ucp..pt

A base da crise portuguesa não é económica, social, financeira. Estes problemas, apesar de atraírem muita atenção, são laterais ao drama central, que é cultural. Vivemos um grave problema cultural, que não é a lamentada tradição lusitana ou a triste decadência do Ocidente, mas algo muito mais prosaico: o País está desanimado e a causa é fácil de descrever.O Antigo Regime apostava tudo na identidade nacional. Propósitos do sistema e linhas de orientação eram bem claras e repetidas. Após 1974 os anos da revolução tiveram, também eles, um marcante programa cultural, se bem que turbulento e ambíguo. Depois do consenso salazarista, foram tempos de intenso debate ideológico. Nos anos 80, com a sociedade pacificada e o regime estabilizado, um novo acontecimento veio trazer outro vector dinâmico: o exigente desafio da adesão europeia empenhou todo o tecido nacional no compromisso do desenvolvimento e da eficácia. Deste modo, com Salazar, Soares e Cavaco, Portugal viveu sob motivações diversas, contraditórias até, mas sempre claras e evidentes.Assegurada a participação habitual na Europa, António Guterres ensaiou uma nova matriz. Vencida a ameaça económica, a sua proposta era um país abastado mas solidário, confortável e compassivo. Apesar das fortes diferenças, o esqueleto do modelo era o de Marcello Caetano. Após breve Primavera, falhou igualmente.No essencial o diagnóstico guterrista era correcto. Portugal já é um país rico, influente, equilibrado. A economia cresce e atrai imigrantes, a rede social é abrangente e sólida. Mas nos dias de hoje a complacência não consegue manter credibilidade, porque as expectativas ultrapassam sempre os sucessos. A Primavera guterrista tinha de durar pouco. A inversão do ciclo e os deslizes orçamentais minaram a confiança, enquanto a globalização empilhava ameaças.Perdida a orientação, começou a crise. Os governos de Barroso e Sócrates têm a profundidade cultural de uma repartição de finanças e, no meio de relativo conforto e dinamismo produtivo, Portugal vive um clima de depressão emocional. Qualquer que seja a conjuntura ouve-se a nostalgia saloia e os lamentos fadistas da desgraça nacional. O PIB até pode acelerar, mas pululam as tradicionais aves agoirentas que se deliciam em criticar a miséria incurável "deste país".Uma crise cultural é sempre reforçada por consequências éticas, e por cá esses sintomas são claros. A desmoralização nacional é também uma queda de padrões morais. Repete-se que o Estado não é pessoa de bem, enquanto a imprensa nos bombardeia com abusos e misérias. Os escândalos da Casa Pia, os casos de corrupção autárquica e futebolística juntam- -se à lentidão da Justiça e ao sentido de impunidade. Correm boatos de favores e negociatas. Até o sucesso empresarial vem inquinado pela sensação de oportunismo e injustiça. Tudo contribui para o clima geral de depressão.Entretanto, sem entender a situação e confiando na verdade do diagnóstico estatístico, a política insiste nos problemas laterais. As autoridades acreditam mesmo na ilusória viabilidade do ideal caetano-guterrista, se a economia funcionar. Enquanto apostam tudo num inglório esforço tecnológico-produtivo, vão enfraquecendo os pilares da estrutura civilizacional.Todos os pólos culturais da sociedade portuguesa estão a dar sinal de alarme. Ataca-se a família como obsoleta e ridícula. A escola passou de veículo ideológico a burocracia rotineira e reivindicante. Artes e espectáculos são minadas pelo clientelismo e tolice. Tenta-se controlar a comunicação social, a qual se rende ao populismo boçal. A perseguição surda à Igreja já levou a uma queixa inusitada da Conferência Episcopal.Assim, mesmo que as reformas funcionem e a economia melhore, o País permanece desmoralizado. Do que Portugal precisa, antes de tudo, não é crescimento e investimento, tecnologia e emprego. Precisa de algo mais precioso: uma ideia, um projecto, um objectivo que empolgue e convença. Algo em que acreditar. Portugal até tem progresso. Precisa de fé.

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