quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Falar vernáculo a mentir

Metade dos portugueses considera que se fala demasiado em futebol neste país. Segundo a votação em curso neste blogue aqui à nossa direita.

Eu considero que se fala demasiado em futebol e que sofremos, enquanto sociedade, de macrocefalia futebólica. Mas nada do que eu disse é informativo, no sentido em que não é novo para ninguém. Big deal, diria um inglês!

Mas a minha reflexão vai mais fundo, vai mais dentro da brenha que é o próprio discurso através do qual o futebol se articula e se baseia para se construir enquanto espaço social de expressão das mais variadas paixões. Naquela perspectiva de Bourdieu. E que me agrada.

A minha teoria: falado até à saciedade, até ao paroxismo, o futebol e a linguagem com que este fenómeno social é construído tem de se reciclar periodicamente, sob pena de essa linguagem já não designar nada. É nesse sentido que entendo o "futebolês", uma linguagem de certa forma codificada e incompreensível - para os mais desatentos. Aquilo que se convencionou chamar de "futebolês" é a cristalização contínua de uma forma de afirmação e legitimização social, mas é sobretudo uma pele que continuamente muda e continuamente se substitui à pele velha, que são os vocábulos gastos e que já nada significam. Dizer "o guarda-redes afastou para canto" é igual a dizer "o guarda-redes defendeu". Mas dizer esta última frase é de uma banalidade insuportável para qualquer futebolómano, imagino eu. Então, o que o locutor diz (ele próprio um amante do futebol [pelos termos que usa, pelas informações que viabiliza e pela duração exagerada da notícia]) é a primeira frase ou outras que, dizendo o mesmo, tem outro sabor para quem ouve. No século XX, ninguém vai dizer de novo: "Amor é como o fogo", porque a comparação está batida por séculos e séculos de poetologia mais e menos barata. Por muito verdade que o amor seja verdadeiro fogo abrasador, passe o pleonasmo.

Porque o futebol é muito pensado em Portugal é que Portugal é hoje muitas vezes confundido ou pelo menos designado como sinónimo de futebol. (Por isso é que a nossa bandeira devia ser outra, a da Federação Portuguesa de Futebol) O erro do D. Afonso Henriques foi não ter aprendido a jogar futebol, senão ainda hoje era recordado. Saudosamente. Mas vejo que me perco no fio errático das palavras. Vou terminando...

O futebol é muito pensado e pouco jogado. É estranho que se discuta algo que é um mero desporto e não se fale das grandes questões do mundo e dos graves problemas com que Portugal se continua a debater. Entretanto, o futebol vai continuando a descascar e a deixar a pele morta pelos campos sevados de Aljubarrota. Qualquer dia, não lhe resta nada.

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