sábado, 23 de junho de 2007

Gil Vicente continua actual...

Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém e diz:

Ninguém:
Que andas tu aí buscando?
Todo o Mundo:
Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando
por quão bom é porfiar.
Ninguém:
Como hás nome, cavaleiro?
Todo o Mundo:
Eu hei nome Todo o Mundo
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo.
Ninguém:
Eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência.
Belzebu:
Esta é boa experiência:
Dinato, escreve isto bem.
Dinato:
Que escreverei, companheiro?
Belzebu:
Que ninguém busca consciência.
e todo o mundo dinheiro.


Ninguém:
E agora que buscas lá?
Todo o Mundo:
Busco honra muito grande.
Ninguém:
E eu virtude, que Deus mande
que tope com ela já.
Belzebu:
Outra adição nos acude:
escreve logo aí, a fundo,
que busca honra todo o mundo
e ninguém busca virtude.


Ninguém:
Buscas outro mor bem qu'esse?
Todo o Mundo:
Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.
Ninguém:
E eu quem me repreendesse
em cada cousa que errasse.
Belzebu:
Escreve mais.
Dinato:
Que tens sabido?
Belzebu:
Que quer em extremo grado
todo o mundo ser louvado,
e ninguém ser repreendido.


Ninguém:
Buscas mais, amigo meu?
Todo o Mundo:
Busco a vida a quem ma dê.
Ninguém:
A vida não sei que é,
a morte conheço eu.
Belzebu:
Escreve lá outra sorte.
Dinato:
Que sorte?
Belzebu:
Muito garrida:
Todo o mundo busca a vida
e ninguém conhece a morte.


Todo o Mundo:
E mais queria o paraíso,
sem mo ninguém estorvar.
Ninguém:
E eu ponho-me a pagar
quanto devo para isso.
Belzebu:
Escreve com muito aviso.
Dinato:
Que escreverei?
Belzebu:
Escreve
que todo o mundo quer paraíso
e ninguém paga o que deve.


Todo o Mundo:
Folgo muito d'enganar,
e mentir nasceu comigo.
Ninguém:
Eu sempre verdade digo
sem nunca me desviar.
Belzebu:
Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso.
Dinato:
Quê?
Belzebu:
Que todo o mundo é mentiroso,
E ninguém diz a verdade.


Ninguém:
Que mais buscas?
Todo o Mundo:
Lisonjear.
Ninguém:
Eu sou todo desengano.
Belzebu:
Escreve, ande lá, mano.
Dinato:
Que me mandas assentar?
Belzebu:
Põe aí mui declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo o mundo é lisonjeiro,
e ninguém desenganado.

Auto da Lusitânia (1532), de Gil Vicente